Há mais de uma semana na Glória está tendo un policiamento feroz das calçadas. Como todos vocês que transitam pela cidade sabem, na Glória há um fervente mercado de chão, o que aqui se chama shopping chão ou xopping xão, como alguns vendedores costumam brincar.
Há mais de uma semana eu não vejo mais o Maurício, vendedor de shopping chão com que eu converso todos os dias. Só vejo os policiais do aterro presente e do centro presente marcando as ruas com seus próprios corpos, os bastões a vista e uma única cor, a da uniforme, no lugar das trilhões de matizes que normalmente caracterizam esse canto da cidade.
Já faz uns meses, o Maurício me explicou que o Crivella decidiu, com base em uma suposta pretensão de decoro urbano (de matriz fascista?), que na Glória não há mais de ter quem venda nas calçadas. Os vendedores tiveram muitos problemas, até para conservar os objetos, pois costumavam guardá-los a beira calçada que se debruça na feira. Foram sujeitos a práticas de sequestro constantes, o que eles vendiam foi dado aso caminhões de lixo.
Se trata de pessoas que, nas poucas fissuras deixadas pelo sistema capitalista, acharam uma forma de sobrevivência e resistência, aliás eco-sustentável. Essas pessoas construíram a sua própria forma de sustento através da reabilitação e venda de objetos, que todos nós, segundo uma lógica de consumo ávido, acumulação compulsiva e rápido descarte, jogamos fora. Essa prática de reabilitação e venda de usados sempre me fez refletir sobre três pontos:
1) o quanto o mundo burguês consome sem se questionar sobre sustentabilidade e distribuição dos recursos;
2) o quanto esses vendedores contribuem na redistribuição da riqueza conseguindo gerar uma renda para eles, onde o mundo capitalista só vê lixo, e garantindo, ao mesmo tempo, o acesso a algumas pessoas com recursos limitados às coisas que eles vendem. Muitas vezes perguntei ao Maurício quem compraria objetos que para mim era impossível ele vender, e, com uma santa paciência face a minha pergunta ingênua e insensível, me explicou que há muitas mais pessoas pobres daquelas que eu consiga imaginar.
3) quantas coisas interessantes podem ser descartadas sem dar o valor certo: há arquivos infinitos de fotos antigas, passaportes, livros, inteiras topografias sentimentais familiares que ali se acham.
Agora a pergunta é qual seria a linha norteadora do Crivella?
O que significa "limpar"? Despojar a cidade de seus corpos legítimos (pois existem!), corpos que encarnam histórias, saberes e dignidades e que são a alma do bairro só porque não respondem a algum "princípio ordenador"?
Derrida sempre falou que a construção do arquivo tem insita em si uma certa prática de violência, o que vai ser legitimado para ser a nossa história, para falar da cidade e das calçadas da Glória? O que vai ser emudecido?
Limpar, limpar limpar o que significa isso, construir um arquivo, uma história oficial da cidade, que discrimina e seleciona com base no censo, etnia, peles? O que é a sujeira segundo essa prática fascista de instauração do "decoro urbano"? São as histórias de corpos que a pulsão de morte remove do arquivo oficial de estado?
De quem é no fundo a cidade?
O que vai sobrar dela?
Quais corpos serão o seu arquivo e a sua história?
Será que seremos todos cúmplices do apagamento desses corpos, que no fundo são os nossos?
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