giovedì 1 novembre 2018

4.675.355 placas para Marielle ou de como a matemática e a épica ainda ajudam a decifrar o mundo





tempo de leitura estimado: 6 minutos.


   Nunca fui boa em matemática. Nunca. Mas se os fantásticos professores que tive me ensinaram algo é que com certeza os números são sempre expressivos. Nos contam alguma coisa. Essas eleições no Brasil foram realmente o ápice de um teatro do absurdo em um quadro de Dalí. Coisas difíceis de se desenredar aconteceram, ou na verdade, coisas tão simples de interpretar que não conseguíamos tomá-las por verdadeiras. O elemento que mais me chocou foi a quebra da placa dedicada à vereadora assassinada, por razões políticas, Marielle Franco, durante um ato em favor de Jair Bolsonaro. Porque sim, temos que repetir todos os dias que a morte de Marielle foi um assassinato político.

   Agora tudo o que conseguimos ver por vídeo em circulação sobre esse ato feroz é que o tal de Rodrigo Amorim e Daniel Silveira, ambos PSL, arrancaram e quebraram a placa dedicada a Marielle Franco. Embora no vídeo não haja a quebra direta da placa por parte do governador eleito do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, ele está lá presente, olha para o gesto em que os dois candidatos mostram, como se fosse um troféu, a placa quebrada da Marielle e acrescenta uma fala pedindo que seja homenageado um tal juiz que está sendo ameaçado pelo trabalho que está fazendo; como se a placa para a Marielle excluísse a possibilidade de homenagear outro servidor que está combatendo a corrupção. Evidentemente haveria para ele uma hierarquia de tratamento. Essa forma de comportamento me parece muito claramente fortalecer a selvageria que lá foi cumprida. Além de afirmar, nas entrelinhas, que existem sujeitos mais merecedores de homenagem que outros, pelo menos na simbologia do imaginário coletivo de um homem hetero, branco e rico.

   Voltemos à primeira consideração, que envolve a matemática, ou melhor, uma das propriedades básica que todos já estudamos, uma vez pelo menos, no ensino médio: a propriedade transitiva. A propriedade transitiva diz o seguinte: se A é igual a B e B é igual a C, isso implica que A é igual a C. E é exatamente nesse ponto que eu me decepcionei mais com a alma brasileira.
Se Witzel participou do ato em que foi quebrada a placa da Marielle sem condenar claramente tal atitude no momento (porque fazê-lo depois é fácil), penso que o 59% dos eleitores, aos quais corresponde o número assustador de 4.675.355 de almas votantes, quebraria a placa da Marielle, ou, no mínimo, não condenaria abertamente um gesto desse tipo. E isso é chocante.

   Quando na Itália foi eleito o péssimo primeiro ministro Silvio Berlusconi que era em tudo ragazze, idiotices, incompetência e bunga bunga, Der Spiegel, respeitável revista alemã, disse que os italianos não podiam se queixar dele, já que cada povo através da eleição simplesmente elege o seu alter ego. Ou seja, a pessoa em que ele se revê, o seu outro. O italiano médio era medíocre, como o Berlusconi. Só pensava que as mulheres podiam ter sucesso com base na bunda e nas tetas, só queria, como o seu primeiro ministro, achar a forma para se enriquecer torneando a lei em detrimento dos demais e poderia continuar assim fazendo ad infinitum. Eu no momento fiquei ofendida, pois não havia votado no Berlusconi, mas a verdade era que Der Spiegel tinha razão, havíamos escolhido nos alimentar de mediocridade, porque éramos medíocres. Mas o que eu quero dizer é que com esse episódio, o Brasil supostamente acolhedor, cuja ícone é a imagem do Cristo de braços abertos, mostrou ter esses braços bem fechados, cruzados. Ou armados por pistolas, ainda que invisíveis.
4.675.355 desrespeitaram a Marielle. Pois, voltando à propriedade transitiva, se Witzel presenciou e não condenou abertamente o ato, e 4.675.355 o escolheram, esse mesmo número de pessoas não condenaria esse ato. Uma forma de ser todos coniventes com o assassinato da Marielle. Parece forte, mas não é. A propriedade transitiva fala forte e a matemática tendencialmente, e especialmente quando aplicada, não falha.

   Aí entra a épica. Eu sempre amei a Ilíada e nisso, diferentemente da matemática, era boa sim. Tirava 10 em todas as provas. Pois fazia a melhor paráfrase possível, sabia todos os nomes e parentescos, e sim, o que me interessava mais, conseguia entrever na épica e na mitologia correlata uma forma de explicar fatos do mundo contemporâneo.

   Acontece que Aquiles, o mais valoroso dos heróis áqueos, brigou com Agamenon que, não reconhecendo oficialmente a sua importância nas batalhas, mandou tirar a sua escrava favorita, Briseis, filha do sacerdote de Apólo, Criseis. Aquiles, que era lindo, livre, leve e solto, ofendido por tal gesto decidiu mandar Agamenon se ferrar. Como? Não participando mais das batalhas. Os troianos, que tinham o apoio de Apólo e cujo maior herói era Heitor, começaram a tirar onda com a falta de Aquiles nas batalhas. Começaram a ganhar todas. Os áqueos estavam desesperados. Mas Aquiles, conhecido pelo seu caráter raivoso e megacabeçudo, era irremovível. Não abria mão da sua decisão. Foi assim que Pátroclo, sobrinho favorito de Aquiles, decidiu pegar a armadura e o famoso escudo do tio, forjado pelo deus do fogo Vulcão, às escondidas para entrar na batalha e assustar os troianos, os quais logo achariam que o mais valoroso dos heróis estava de novo no campo. Só que Pátroclo não era tão bom de espada quanto Aquiles e foi morto por Heitor. Quando a máscara da armadura caiu foi que todo o mundo se deu conta do sufoco que iam passar. Aquiles raivoso, com o sangue batendo nas veias decidiu ir matar o herói troiano.
Aquiles foi à beira dos muros de Ilion, a antiga cidade de Troia, onde Heitor estava já se preparando para o duelo dedicando a  Andrómaca uma belíssima declaração-despedida de amor, pois sabia que provavelmente ia morrer. Aquiles além de ser bom demais, era um semideus. Heitor também era bom demais, só que era um herói humano, todas suas virtudes provinham de si mesmo e também era desprovido da armadura e do escudo forjados pelo deus do fogo que garantiam a imbatibilidadade. Assim foi que Heitor morreu. Ainda na raiva Aquiles pegou o corpo de Heitor e o arrastou com uma biga durante quilômetros, profanando sua memória no intento de impedir a sepultura, coisa gravíssima pela cultura grega, pois sem sepultura a alma nunca teria paz. Assim Príamo pai de Heitor, já velho e sem paixões para brigar, mas só com experiência para oferecer, derramado em lágrimas, pediu a Aquiles que respeitasse o inimigo pelo menos na morte.
Você acreditam que Aquiles no final devolveu o corpo, chorou junto com ele os lutos e honrou a sepultura do inimigo? Aquiles era o mais cabeçudo e raivoso dos heróis gregos, tanto que a Ilíada começa assim “Cantami o Diva del Pelide Achille l’ira funesta che infiniti addusse lutti agli achei” (ainda sei de cabeça em italiano), me conte oh Musa sobre o Aquiles, filho de Peleu, cuja a ira funesta fez inúmeros mortos entre os gregos.

   Se o respeito para os mortos, até inimigos, fez mudar de ideia ao mais estigmatizado pela raiva, dos personagens das Ilíadas, realmente não consigo entender como para além das distâncias políticas com Marielle esses fanáticos nem na morte conseguiram respeitá-la.

Ainda bem que existe a Mangueira. Isso dá uma certa esperança.

Ergue-se da cadeira o divo Aquiles,
Por si levanta a Príamo, e o compunge
Branca a régia cabeça e branca a barba:
“Ai mísero, sobejo hás padecido!
E a mim que te privei de extremos filhos,  
Buscas sozinho? Entranhas tens de ferro.
Senta-te;
ao luto agora devemos tréguas.

Viver sempre em tristeza é lote humano:
Existir sem cuidados é dos deuses.




*Os dados da votação foram retirados do site do tribunal eleitoral regional.
*Se agradece a revisora Nicole Alvarenga Marcello que para a revisão desse artigo não cobrou nada; depois dessa primeira revisão o texto sofreu outras alterações, por isso se erros de português aparecerem não são devidos à incompetência da revisora.
*Os versos da Ilíada citados em português estão na tradução de Odorico Mendes; os grifos são meus.
*Os versos da Ilíada citados em italiano, foram de cabeça, não saberia referenciar a tradução.

martedì 30 ottobre 2018

XOPPING XÃO: uma reflexão psicanalítica sobre cidade

Há mais de uma semana na Glória está tendo un policiamento feroz das calçadas. Como todos vocês que transitam pela cidade sabem, na Glória há um fervente mercado de chão, o que aqui se chama shopping chão ou xopping xão, como alguns vendedores costumam brincar.
Há mais de uma semana eu não vejo mais o Maurício, vendedor de shopping chão com que eu converso todos os dias. Só vejo os policiais do aterro presente e do centro presente marcando as ruas com seus próprios corpos, os bastões a vista e uma única cor, a da uniforme, no lugar das trilhões de matizes que normalmente caracterizam esse canto da cidade.
Já faz uns meses, o Maurício me explicou que o Crivella decidiu, com base em uma suposta pretensão de decoro urbano (de matriz fascista?), que na Glória não há mais de ter quem venda nas calçadas. Os vendedores tiveram muitos problemas, até para conservar os objetos, pois costumavam guardá-los a beira calçada que se debruça na feira. Foram sujeitos a práticas de sequestro constantes, o que eles vendiam foi dado aso caminhões de lixo.
Se trata de pessoas que, nas poucas fissuras deixadas pelo sistema capitalista, acharam uma forma de sobrevivência e resistência, aliás eco-sustentável. Essas pessoas construíram a sua própria forma de sustento através da reabilitação e venda de objetos, que todos nós, segundo uma lógica de consumo ávido, acumulação compulsiva e rápido descarte, jogamos fora. Essa prática de reabilitação e venda de usados sempre me fez refletir sobre três pontos:
1) o quanto o mundo burguês consome sem se questionar sobre sustentabilidade e distribuição dos recursos;
2) o quanto esses vendedores contribuem na redistribuição da riqueza conseguindo gerar uma renda para eles, onde o mundo capitalista só vê lixo, e garantindo, ao mesmo tempo, o acesso a algumas pessoas com recursos limitados às coisas que eles vendem. Muitas vezes perguntei ao Maurício quem compraria objetos que para mim era impossível ele vender, e, com uma santa paciência face a minha pergunta ingênua e insensível, me explicou que há muitas mais pessoas pobres daquelas que eu consiga imaginar.
3) quantas coisas interessantes podem ser descartadas sem dar o valor certo: há arquivos infinitos de fotos antigas, passaportes, livros, inteiras topografias sentimentais familiares que ali se acham.
Agora a pergunta é qual seria a linha norteadora do Crivella? 

O que significa "limpar"? Despojar a cidade de seus corpos legítimos (pois existem!), corpos que encarnam histórias, saberes e dignidades e que são a alma do bairro só porque não respondem a algum "princípio ordenador"?
Derrida sempre falou que a construção do arquivo tem insita em si uma certa prática de violência, o que vai ser legitimado para ser a nossa história, para falar da cidade e das calçadas da Glória? O que vai ser emudecido?
Limpar, limpar limpar o que significa isso, construir um arquivo, uma história oficial da cidade, que discrimina e seleciona com base no censo, etnia, peles? O que é a sujeira segundo essa prática fascista de instauração do "decoro urbano"? São as histórias de corpos que a pulsão de morte remove do arquivo oficial de estado?

De quem é no fundo a cidade? 

O que vai sobrar dela? 
Quais corpos serão o seu arquivo e a sua história? 
Será que seremos todos cúmplices do apagamento desses corpos, que no fundo são os nossos?