Estética do guarda-chuva ou da difícil sobrevivência em épocas de boçalidades
É nesses dias de chuva que há duas coisas ainda mais impetuosas, ainda mais desafiadoras a serem cumpridas. Para os que como eu sempre esquecem de sair com guarda-chuva, ou mesmo quando lembram, o esquecem no primeiro lugar onde param, começa uma batalha renovada a cada passo para a conquista de um espaço coberto à beira dos prédios. Marquises, parapeitos, beirais, galerias nas fachadas dos prédios, tudo serve. Ou melhor, tudo serviria, se não fosse o fato de que quem já tem o guarda-chuva, em vez de ficar no merecido lugar de exposição aquática, como forma de prêmio por ter lembrado de levar o tão valioso objeto ou ainda por não tê-lo esquecido em lugar nenhum, se acha no direito de andar embaixo de marquises, parapeitos e beirais com o guarda-chuva aberto. Para quem se choca com essas pessoas no verso oposto ou no mesmo verso, só sobra a parte externa da rua, posição piorada pelo fato de esses grandes guarda-chuvas azul cobalto dos senhores sempre-levo-guarda-chuva-e-nunca-o-esqueço-em-lugar-nenhum gotejarem água em abundância pelas extremidades do esqueleto metálico que funciona como corredor de transporte de pequenos rios. Por que azul cobalto? O guarda-chuva desse tipo de pessoa sempre será azul cobalto, são seres lógicos, previsíveis, calculadores e organizados; os guarda-chuvas estampados são da outra metade — que não o leva ou que quando o leva, esquece. Estes são seres ilógicos, imprevisíveis, desprendidos e definitivamente desorganizados.
Sem querer ainda tirar conclusões, vamos ao segundo enfrentamento. A segunda prova. A chuva finalmente diminui. Dá descanso para as pobres formigas que se movimentam pela cidade, trabalhando incansavelmente em prol de uma riqueza que não lhes pertence. Não só essas pobres formigas trabalhadoras fazem as contas com as próprias tristezas, solidões e preocupações com café que em épocas de inflação chega a custar R$ 19,90, mas ainda devem tentar fugir do risco de serem espetados. Como assim espetados? Dirá o leitor, que acha tal colocação um exagero. Pois é, parece difícil de entender, mas não o é. Os mesmos senhores sempre-levo-guarda-chuva-e-nunca-o-esqueço-em-lugar-nenhum, ao fecharem o guarda-chuva, não conseguem deixá-lo em uma posição vertical, como qualquer pessoa dotada de bom senso faria. Não, eles não. Eles seguram o guarda-chuva grande, azul cobalto e com ponta grande de aço bem cintilante, horizontalmente. O que pode provocar um guarda-chuva segurado em posição horizontal? Ora bem, não há de se esquecer que essas pessoas não se limitam simplesmente a manter em posição horizontal um objeto de cerca de 60 cm, elas o balançam e o sacodem de trás para frente e de frente para trás. A ponta de metal. Medição de cerca de 60 cm. Posição horizontal. Resultado: espetar as pessoas. Sempre me encontro andando ou na frente ou atrás de um desses senhores tudo-levo-e-nada-esqueço que não percebem que o guarda-chuva ou espeta alguém atrás (na maioria das vezes eu, euzinha mesma) ou se choca com alguém na frente (na maioria das vezes eu, euzinha mesma).
E quando a batalha termina, finalmente em casa fica a amargura de um dia de chuva ser muito mais que um casaco molhado. Qual o denominador comum que alimenta e impulsiona essas duas atitudes: andar com guarda-chuva embaixo de lugares cobertos que poderiam abrigar os desprovidos de tais ferramentas e segurar o mesmo objeto pontudo de cerca de 60 cm horizontalmente, balançando-o de maneira a espetar quem estiver por perto? O fato de não perceber o corpo do outro e suas necessidades. O fato de estar na rua como se está na própria casa, e se isso às vezes pode até ser bom, porque ressignifica o espaço público de memórias pessoais, por outro lado, e nesse caso específico particularmente, me faz pensar na incapacidade de viver o espaço público como lugar do coletivo e no egoísmo de transformá-lo em um grande espaço privado, e disso nunca saiu coisa boa.