martedì 19 marzo 2019

Porque o simbolismo de Vai malandra ainda está bem longe do feminismo e a Anitta não representa minhas instâncias feministas

Porque o simbolismo de Vai malandra ainda está bem longe do feminismo 
e a Anitta não representa minhas instâncias feministas



Consciente do problema em que estou me metendo, pois falar de símbolos amados pelo país que se escolhe por adoção e por amor sempre te coloca no lugar da gringa  que quer falar de uma coisa que não conhece a fundo. 
Aceito essa possibilidade de ataque, já que isso durante as últimas eleições presidenciais foi a regra e escolher morar fora do seu país significa isso também. 
“Ahora bancatela”diriam meus amigos argentinos. 

Mas como já decidi em 2018, em 2019 vou dar continuidade a todas aquelas ações de desafio que me legitimam como cidadã do mundo sem medo de falar. No fundo o debate, até na briga, é sempre prolíficoe nesses tempos mais que nunca temos que ser fomentadores de discussão. Até quando eles incomodam.

Durante a noite do réveillon e na última semana, por ocasião do dia das mulheres, me encontrei conversando com várias pessoas sobre a pop-star Anitta. O assunto era se o vídeo Vai Malandra poderia representar ou não uma forma de empoderamento de tipo feminista e trazer instâncias para as questões de gêneros tão urgentes para as mulheres, não só do Brasil, mas do mundo inteiro. O mesmo debate que envolve a Anitta, também toca outras ícones pop de fama mundial, tipo a Beyoncé, que por mais que eu adore, traz uma quantidade infinita de aporias internas – entre as quais ser ícone feminista, mas pagar poucos dólares às costureiras da sua marca.

Algumas pessoas afirmaram que a Anitta pode ser sim um exemplo de mulher empoderada por duas razões específicas. 
A primeira tem a ver com o ideal de ascensão social, já que a Anitta provém de uma favela do Rio de Janeiro, e portanto representaria o mito da self-made woman, que conseguiu lutar contra a corrente e as barreiras e construir uma sólida base financeira e um grande sucesso em um mundo que discrimina pelo gênero e pela extração social. 
A segunda razão estaria mais ligada à imagem e à simbologia propriamente dita da mulher que a cantora ofereceria. Nessa perspectivao ponto de força, segundo algumas pessoas, foi ter quebrado os paradigmas machistas que objetificam o corpo da mulher e ter decidido ela mesma fazer o papel de gostosa, que requebra com o bumbum sem que ninguém lhe diga quando e como fazer. Outras alegações para essa posição eram que a cantora carioca, em termos visuais, também rompia com o cânone de beleza que restringe o corpo feminino a uma amostra de turgidez sensual e colágeno, pois ela mostrava durante os primeiros oito segundos do vídeo – contei,são 8 mesmo – seu bumbum com celulite e sem retoques.


Outras pessoas com que discuti também mostraram como a Anitta, especialmente para algumas situações nas comunidades, onde muitas mulheres estão bem na frente na luta pelo sustento da família e o reconhecimento social por tudo o que elas fazem, legitime esse modelo de mulher independente que não precisa de um homem para manter a casa e sustentar a família. E isso chega a ser para algumas pessoas um modelo de emancipação par ser imitado. Todas essas percepções me parecem verdadeiras, mas limitam, do meu ponto de vista, a perspectiva da luta feminista das mulheres. E direi logoporquê. 

Eu como linguista trabalho muito com filosofia da linguagem e filosofia estética, e é fato que não existe um grau zero da linguagem. 
A linguagem se compõe de discursos, e de outra forma poderíamos dizer que discursos diferentes se apropriam da linguagem. Também a forma de mostrar as coisas, de ordenar o sensível diante dos nossos sentidos, a estética em que as produções artísticas e culturais aparecem, sempre querem dizer algo. 
Vamos tentar desbravar brevemente o tipo de discurso que a linguagem da Anitta trazassim como a estética presente no vídeo. 



Resumindo, o vídeo acima postado mostra uma linda mulher, Anitta, subindo de moto com um cara para uma laje onde outras belas mulheres sedutoras, com biquíni de fita isolante, tomam sol mexendo com o bumbum na tentativa de fazer aparecer as famosas marquinhas que no imaginário coletivo brasileiro são percebidas como sexy. À noite tudo acaba em um baile. Durante o dia, enquanto as meninas tomam sol,  Anitta rebola em uma piscina com um cara que usa o seu bumbum como se fosse um tambor. 

É verdade que nenhum homem do vídeo obriga Anitta a receber repique de mão na bunda, e é verdade que A malandra tem toda a situação sob o seu controle, mas ela não faz nada menos nada mais do que assumir o papel que normalmente pertence ao homem só lhe mudando o sexo. Vamos tentar explicar melhor. A linguagem da Anitta é como se fosse uma linguagem dos homens levada a frente pelas mulheres. Ela simplesmente inverte os papéiscomo que dizendo: Os homens objetificam o meu corpo? Ah não, sou eu que decido entrar nesse papel de gostosa e que permito que eles  me apalpem e dedilhem no meu bumbum que nem tambor. Sou eu que decido rebolar até o chão e usar o meu corpo como forma de sedução. 

Ok. Pode ser uma opção. Mas até aqui a Anitta só inverteu os papéis, ela decide sim, ela rebola sim, ela permite aos homens que a toquem, sim, mas ela age e se comporta exatamente dentro de paradigmas de pensamentos masculinos e patriarcais. A Anitta nesse vídeo decide simplesmente que comportamentos masculinos e machistas que às vezes são sofridos pelas mulheres, são autorizados pela própria mulher porque supostamente ela está querendo aquilo. Digo supostamente ela está querendo aquilo porque a réplica que algumas pessoas com quedebati me deram é que a Anitta no vídeo mostra uma mulher que deixa aquilo acontecer porque quer. A minha pergunta é: será que no imaginário de algumas mulheres aquela escolha de “eu decido malandramente ser gostosa” é válida só porque há uma indústria que produz sentido e o capital criando um imaginário coletivo que faz aquilo aparecer como uma escolha nossaA questão feminista para mim não é inverter os papéis, é subverter o paradigma. É desconstruir a linguagem com que somos tratadas e inventar uma nova. Infelizmenteo empoderamento não passa pela autorização de um tratamento só porque em algum momento estou querendo. Se esse tratamento traz consigo a marca de anos de assujeitamento e microfísica do poder que  –  como diria um famoso amado meu de outros tempos –  se exerce sobre os corpos, ele então não me interessa, nem se eu como mulher posso decidir que quero aquilo em algum momento. Dito em poucas palavrasautorizar um comportamento machista, não faz dele um elemento de luta feminista, ou melhor, não serve para a nossa luta de emancipação, não acrescenta nada. Dessa forma só se autoriza um homem, sem reprovação nenhuma, a manter as atitudes de sempre e só deixa as mulheres convencidas de que não existuma indústria que produz sentido fazendo com que “ a gostosa” seja o psico e biotipo almejado por elas.

Eu, como mulher feminista, não quero em nenhum momento atuar segundo paradigmas patriarcais que veem o meu corpo como um objeto sexual e achar isso ok só porque eu estou querendo. Em sumasó porque eu liberei. Podemos querer tantas coisas e ainda assim essas coisas não trazerem as nossas instâncias. Quantas pessoas nas últimas eleições votaram apoiando “sem querer” causas e sujeitos que de fato não os representavam, validando por fimo discurso do opressor sem se dar minimamente conta disso e alegando razões outras que pudessem corroborar suas escolhas? Sem querer exagerar, acho realmente, e nisso o professor Charles Feitosa de filosofia estética deixou uma marca na minha formação, que a questão não esteja só em uma inversão de papéis, mas em uma ruptura, uma desconstrução do paradigma opressor, segundo o vocabulário delenuma transversão. 

Lembro-me muito nitidamente de um episódio brasileiro, em que um juiz não condenou um sujeito que havia ejaculado em cima de uma mulher em um ônibus de São Paulo. Agora o fato foi o horrível, o juiz tomou uma decisão absurda, condenável e criticável com toda a força, mas a reação de uma parte da sociedade que luta por mais direitos foi criticável também. 

Estava sentada no meu computador dando uma vadiada pela internet nas redes sociais quando de repente recebo um convite no Facebook para um evento que era “ejaculação coletiva na cara do juiz fulano de tal”. Em suma achei esse ato e o nome do evento horroroso, se os outros são machistas eu não quero adotar as mesmas ferramentas para construir minha luta. E obviamente não penso em desconstruir e condenar um ato/situação de machismo com uma dialética e uma linguagem que é a mesma daqueles que quero condenar. Não quero agir como eles e usar sua mesma linguagem de violência e opressão. Não acho legal nunca, até quando forem as mulheres, gozar na cara de alguém sem o seu consentimento, até se for por vingança ou por reação a uma justa causa. O título do evento que queria nascer com um intuito bom, ou seja apoiar uma mulher e através dela a luta de todas as que já passaram por um ato ofensivo de opressão, se tornou um contrassenso. A opressão das mulheres e as ofensas muitas vezes se concretizam e passam pelos corpos físicos, de fato alguém ejaculou numa mulher sem o seu consentimento, invadiu seu corpo físico e com isso seu corpo político, e, o ato que queria defendê-la, afirmaria a mesma injustiça reproduzindo o mesmo padrão. A ejaculação coletiva na cara do juiz que promulgou a sentença não pode pertencer a uma linguagem e a uma luta feminista consciente. Só seria a perpetração de outro abuso, imitando uma linguagem e uma estética que não podem representar nossas instâncias. 

O que gostaria de dizer, sem com isso tornar a Anitta um monstro, é que também nós mulheres e feministas temos que prestar atenção não só às palavras de ordem das nossas lutas, mas também às linguagens e às estéticas que acaracterizam. Pois o capital está pronto em qualquer esquina para se apropriados nossos discursos através de linguagens e propostas que respondem a lógicas mercadológicas e patriarcais, e maquiando-as com discursos de esquerda. Não adianta a Anitta mostrar nos primeiros oito segundoo bumbum com celulite se no resto do vídeo o padrão de beleza principal e preponderante, tirando a Juju Todinho – uma mulher de dimensões fora do padrão estético que aparece no vídeo dançando – é um corpo túrgido, perfeito e bem “mulher-gostosa-padrão-machista-brasileiro”, que se prepara para fazer marquinha assim como alguma indústria que produz sentido decidiu que é o sexy. Não adianta gritar sou eu que decido rebolar até o chão e me colocar no centro da atenção se dois caras em dois momentos diferentes repicam o seu bumbum como se fosse um tamborim com um fazer e uma satisfação manifesta de um poderoso chefão que possui um mulherão para a exposição. Tudo isso não adianta porque os símbolos, as imagens e a linguagem são iguais às dos homens. Ela está falando como falaria um homem, a quebra do padrão se realiza pela invenção de uma linguagem e umas estéticas novas. Essa é a parte mais difícil que cabe a nós mulheres. Construir um rio que possa abalar tudo o que anteriormente disseram sobre a gente. Derrubar o discurso que envolve a linguagem numa capa de machismo e capital. Como quando dos shampoos com silicones e parabenos passamos pro low poo. Processo idêntico. 

Como se diz na Itália pane al pane e vino al vino. A Anitta é sim uma mulher corajosa que se fez sozinha e que ascendeu socialmente incorporando um simbolismo de mulher independente, que lhe reconheço, mas dizer que o discurso feminista se resolve aqui não procede. Também dizer que Vai malandra representa uma libertação do corpo da mulher, é uma posição que não se sustenta para mim, só vejo nesses corpos expostos amarras a padrões que nós mulheres não escolhemos. 

Eu não me reconheço na estética e na linguagem do vídeo. Permitir a alguém que batno bumbum como se fosse um tamborim e admitir que não sou um tripúdio de colágeno por oito segundos, mas fazer o papel da gosta nos outros 4 minutos e meio rebolando na cara de alguém usando meu corpo como forma de sedução, para mim não é subversão do paradigma patriarcal. 
A gente só começa a falar como eles.