martedì 13 giugno 2023

Estética do guarda-chuva ou da difícil sobrevivência em épocas de boçalidades


É dia de chuva e todo o mundo está com pressa, como em qualquer dia útil, subindo e descendo pelas escadas do metrô. Tentando conquistar o ônibus e se esquivando, ao mesmo tempo, da onda de água que a roda daquele meio de transporte gerará. 

É nesses dias de chuva que há duas coisas ainda mais impetuosas, ainda mais desafiadoras a serem cumpridas. Para os que como eu sempre esquecem de sair com guarda-chuva, ou mesmo quando lembram, o esquecem no primeiro lugar onde param, começa uma batalha renovada a cada passo para a conquista de um espaço coberto à beira dos prédios. Marquises, parapeitos, beirais, galerias nas fachadas dos prédios, tudo serve. Ou melhor, tudo serviria, se não fosse o fato de que quem já tem o guarda-chuva, em vez de ficar no merecido lugar de exposição aquática, como forma de prêmio por ter lembrado de levar o tão valioso objeto ou ainda por não tê-lo esquecido em lugar nenhum, se acha no direito de andar embaixo de marquises, parapeitos e beirais com o guarda-chuva aberto. Para quem se choca com essas pessoas no verso oposto ou no mesmo verso, só sobra a parte externa da rua, posição piorada pelo fato de esses grandes guarda-chuvas azul cobalto dos senhores sempre-levo-guarda-chuva-e-nunca-o-esqueço-em-lugar-nenhum gotejarem água em abundância pelas extremidades do esqueleto metálico que funciona como corredor de transporte de pequenos rios. Por que azul cobalto? O guarda-chuva desse tipo de pessoa sempre será azul cobalto, são seres lógicos, previsíveis, calculadores e organizados; os guarda-chuvas estampados são da outra metade que não o leva ou que quando o leva, esquece. Estes são seres ilógicos, imprevisíveis, desprendidos e definitivamente desorganizados. 

Sem querer ainda tirar conclusões, vamos ao segundo enfrentamento. A segunda prova. A chuva finalmente diminui. Dá descanso para as pobres formigas que se movimentam pela cidade, trabalhando incansavelmente em prol de uma riqueza que não lhes pertence. Não só essas pobres formigas trabalhadoras fazem as contas com as próprias tristezas, solidões e preocupações com café que em épocas de inflação chega a custar R$ 19,90, mas ainda devem tentar fugir do risco de serem espetados. Como assim espetados? Dirá o leitor, que acha tal colocação um exagero. Pois é, parece difícil de entender, mas não o é. Os mesmos senhores sempre-levo-guarda-chuva-e-nunca-o-esqueço-em-lugar-nenhum, ao fecharem o guarda-chuva, não conseguem deixá-lo em uma posição vertical, como qualquer pessoa dotada de bom senso faria. Não, eles não. Eles seguram o guarda-chuva grande, azul cobalto e com ponta grande de aço bem cintilante, horizontalmente. O que pode provocar um guarda-chuva segurado em posição horizontal? Ora bem, não há de se esquecer que essas pessoas não se limitam simplesmente a manter em posição horizontal um objeto de cerca de 60 cm, elas o balançam e o sacodem de trás para frente e de frente para trás. A ponta de metal. Medição de cerca de 60 cm. Posição horizontal. Resultado: espetar as pessoas. Sempre me encontro andando ou na frente ou atrás de um desses senhores tudo-levo-e-nada-esqueço que não percebem que o guarda-chuva ou espeta alguém atrás (na maioria das vezes eu, euzinha mesma) ou se choca com alguém na frente (na maioria das vezes eu, euzinha mesma). 

E quando a batalha termina, finalmente em casa fica a amargura de um dia de chuva ser muito mais que um casaco molhado. Qual o denominador comum que alimenta e impulsiona essas duas atitudes: andar com guarda-chuva embaixo de lugares cobertos que poderiam abrigar os desprovidos de tais ferramentas e segurar o mesmo objeto pontudo de cerca de 60 cm horizontalmente, balançando-o de maneira a espetar quem estiver por perto? O fato de não perceber o corpo do outro e suas necessidades. O fato de estar na rua como se está na própria casa, e se isso às vezes pode até ser bom, porque ressignifica o espaço público de memórias pessoais, por outro lado, e nesse caso específico particularmente, me faz pensar na incapacidade de viver o espaço público como lugar do coletivo e no egoísmo de transformá-lo em um grande espaço privado, e disso nunca saiu coisa boa.


martedì 3 marzo 2020

Brazilian wax - ou de quando outras mulheres querem cavar a sua virilha


Virilha cavada ou comum?


Thema - Anatomical roots

Uma grande amiga minha sempre me disse: "Você não pode ir embora do Brasil sem ter feito a unha e sem ter ido se depilar". Só um tempo depois entendi, na sua ironia, a importância dessa afirmação. Realmente os lugares de produção de beleza padrão são uma experiência humana de captação de informações, dados e conhecimento de pensamento comum muito poderosos. Algo como 15 minutos de espera num salão poderiam dar informações sociológicas suficientes para embasar um projeto de tese de doutorado.

Parto do espanto inicial da gringa (que já não é tão gringa e que também não gosta ser chamada de gringa, mas que se auto-chama assim como forma de exorcizar uma coisa de que não gosta), o fato de no Brasil existir um lugar  só para se depilar, onde há filas de mulheres aguardando a sua vez num salão branco hospitalar com intermitências de roxo vinho. Não é que na Europa o pessoal não se depile (ainda afirmo que se depila menos), mas a questão é que não existe um lugar só para isso, tem lugares multi-função, geralmente o cabelereiro oferece a possibilidade de você fazer pé e mão e se depilar, se quiser. Assim como não existe um estádio só para sambar - um Sambódromo você só acha no Brasil. Na Itália não temos um Tarantellódromo ou na Espanha não existe um Flamencódromo. Aqui você acha um lugar só para sambar e um lugar só para se depilar, por mais que seja impróprio o paralelismo é uma coisa que me deixa impressionada ainda hoje. 

Lembro quando, ainda na Europa, minha esteticista, que encontrava raramente para me depilar as pernas, me disse que tinha uma cliente brasileira que ficava espantada com a quantidade de pelos que as mulheres botavam a mostra na Europa. Ainda acrescentou que ela só costumava fazer a depilação total das partes íntimas. Confesso que só de pensar na dor de uma depilação total do conjunto virilha- vagina fiquei aflita. Quer dizer, todo o mundo pode tratar seu próprio corpo segundo critérios estéticos que lhe resultam mais agradáveis, mas ainda assim sei que nós mulheres vivemos uma pressão muito mais forte e que algumas vezes não todas as escolhas são livres, ainda que o acreditamos. Não que eu seja fã dos pelos em geral, tendencialmente sou uma feminista with shaved legs, mas acho realmente que as escolhas deveriam ser livres de obrigações padrão, tanto num sentido quanto no outro. Há quem faça depilação total forçada pelo padrão machista e há quem pare de se depilar só para não ser considerada menos feminista. A questão é: Do que é que você gosta mesmo? Depois desse relato da minha esteticista tomei conhecimento da famosa, até então por mim desconhecida, brazilian wax. Descobrindo que exatamente o tipo de cera feita aqui no Brasil acaba sendo um modelo mundial para os lugares de padronização do corpo feminino.

Performance de Deborah De Robertis (maio 2014),
na frente do quadro de Gustave Courbet "A origem do mundo" (1866). 
Assim com essa lembrança na cabeça e baixo a sugestão dessa amiga decidi finalmente ir em um desses lugares do Rio de Janeiro especializados na uniformização da superfície corporal, livrando-a de qualquer tipo de obstrução. Depois de uma breve espera no famoso salão branco hospitalar com intermitência de roxo vinho e um cartaz cinza com uma escrita dourada anunciando os benefícios das clientes premium, consegui entrar  e me dei conta da velocidade de produção dessas meninas, a fila podia ser comprida ou curta, em torno de cinco minutos a sala de espera conseguia estar vazia. As filas se desfaziam rapidamente com as mulheres sendo sugadas, como no aspirador, na porta que dava acesso ao lugar onde a mágica acontecia. No tempo de espera o cartaz cinza, anunciando os benefícios das clientes premium, funcionava para mim como sistema de pressão, um pouco como o amontoado de livros numa biblioteca, os quais sempre me lembram o quanto eu não li. Bom, esse cartaz me fazia visualizar em forma de percentual a superfície do meu corpo que eu ainda não tinha coragem de depilar, gerando algum senso de culpa ou displicência. 


Uma vez superada a linha limite que dividia o salão branco hospitalar com intermitência de roxo vinho das salas operativas, uma certa tensão começava a subir, o meu batimento cardíaco aumentava, me sentia como se estivesse prestes a passar por uma cirurgia. De fato, a moça depiladora introduz as clientes em quartinhos cubiculares com cama tipo japonesas embrulhadas em grandes papeis rasgados monouso, te convida a arrumar-te e depois de um tempinho, sempre breve (é tudo na rapidez) volta ela com um panelaço cheio de cera quente. A depilação funciona assim, a cera vai ser esparramada em grande listras uniformes e por inteiro no lugar a ser depilado, em uma camada espessa, a qual será retirada de uma vez só com um movimento que vai do baixo para o alto. Para quem nunca teve a experiência, imagine um grande adesivo que cubra a perna inteira e depois tirar o mesmo partindo do baixo em um único rasgão. Com olhos de gato de Shreck comecei a olhar a moça que ia fazer a operação. As primeiras vezes de uma forma ou outras todas me perguntavam com olhar assustado: Você vai tirar só os da perna mesmo? Ou ainda E essa virilha não vai fazer não? Quando eu explicava que não era necessário, que ia fazer sozinha, as moças não conseguiam disfarçar a expressão indagativa e uma espécie de embaraço que sentiam no meu lugar. Eu tinha os pelos, mas elas se sentiam desconfortáveis com isso. Sentia que o desconforto delas era real, não puxavam para eu fazer os pelos simplesmente para vender, elas realmente não achavam esteticamente agradável e se indignavam com a possibilidade de eu deixar a minha virilha mais selvagem que o resto do meu corpo. 

Técnica de depilação de um desses salões.
Obviamente continuei frequentando esse lugar para depilar as pernas, afinal tirando o susto inicial é rápido e prático, só que todas às vezes ao expressar a vontade de não querer fazer a virilha os comentários eram Voce não é casada, né? Ou Seu marido não pede, certo? Ou ainda, Antes ou depois tem que fazer, uê! A coisa que me deixava perplexa era a ligação marido-virilha, ou seja, elas admitiam que algumas mulheres faziam a depilação total do conjunto virilha-vagina a pedido dos maridos. Comecei a pensar de quantas coisas as mulheres abrem mão a pedido do seu próprio companheiro, coisas que agem diretamente no nosso corpo físico e que se realizam também através a suportação da dor. Fiquei perplexa com a ideia de alguma mulher poder decidir fazer isso porque alguém pediu. Aliás, além de rejeitar a ideia de fazer um certo tipo de depilação porque o meu companheiro gosta, também confesso nunca ter tido nenhum tipo fetiche por uma depilação que me lembre algo da infância, da qual, de fato, não sinto nostalgia; me parece também que se a natureza colocou alguns pelos como barreira é porque os mesmos devem ter alguma função. Assim é que, para além da dor, mesmo esteticamente eu fico incomodada com uma vagina totalmente lisa, não curto e não quero. Esse é a minha sensibilidade estética, do mesmo jeito que não vou passar chapinha e o meu cabelo é e ficará selvagem para sempre. Mas a história não termina aqui, pois chegou um momento em que decidi terciarizar também a depilação da virilha e aí vai o relato sério. 

Meme de Fantaghirò.
Tradução: "Tranquila, vamos cortar só as pontas". 
Chegando no salão branco hospitalar com intermitência de roxo vinho fiquei olhando perdida para o “cardápio” relativo às virilhas: virilha comumvirilha cavadavirilha modeladavirilha comum mais faixa de contornovirilha cavada mais faixa de contorno e virilha total. Entendi que o mais básico devia ser a virilha comum. As primeiras vezes tinha que explicar bem que não era para cavar nada, que eu estava fazendo com elas pelas primeiras vezes e que queria que fosse igual a como eu faço. Sentia que estava falando com a mesma preocupação de quem vai no cabelereiro que geralmente promete só cortar as pontas e depois te ferra com corte Chanel. As primeiras vezes o experimento deu certo, apesar de algumas insistências sobre o perímetro do biquíni, às quais respondia dizendo que com certeza o biquíni que uso não deixaria entrever nada. Mas uma das últimas vez aconteceu o problema, pois, tinha uma pessoa um pouco mais insistente sobre a forma como deveria ser a minha virilha em relação ao verão e eventuais namorados. Logo cortei dizendo que queria uma virilha comum e que para mim o assunto não era nem para ser discutido, embora entendesse quem tivesse preferências estéticas diferentes devidas aos biquínis do verão e aos namorados fãs de superfícies lisas. Assim logo depois de ter colocado a cera, percebia que algo estava diferente, como se tivesse sido coberta uma superfície maior. Coisa que foi corroborada pelo rasgão e a dor profunda que senti. A mulher olhou para mim e com um sorriso, que entrevia estar se abrindo baixo a máscara branca, disse: Viu, não doeu, foi rápido. Ou seja, a mulher cavou a minha virilha sem eu querer, para ela era impossível eu esteticamente não querer o liso, era só uma questão de dor, ela de fato queria fazer algo “legal” para mim, obtendo o efeito contrário: me senti invadida na minha intimidade e sai chateada de lá exatamente como quando vai no cabelereiro e cortou demais, sem contar que dessa vez também tinha o elemento dor.
Man Ray - Erotique voilée, 1933.

Me lembrei assim do começo do livro do filósofo coreano Byung-Chul Han que abre o livro a salvação do belo assim “O polido é sinal de distinção da nossa época. É o que têm em comum as esculturas de Jeff Koons, o I-phone e a depilação brasileira. Porquê hoje achamos legal tudo o que é polido? Além do efeito estético, ele reflete um imperativo social, encarna a atual sociedade da positividade. O polido não fere, nem coloca algum tipo de resistência. Só pede um like. O objeto (Gegenstand) polido elimina a própria opositividade (Gegen), removendo assim qualquer tipo de negatividade" (Tradução minha da edição italiana, Nottetempo, 2018). Assim consegui perdoar a depiladora, porque entendo que o seu sentido comum é socialmente construído, e é exatamente o mesmo que faz todo o mundo gostar do I-phone ou correr atrás de um like, ou encher-se a cara de botox para tirar vincos e gretas do rosto. Fica, todavia, a profunda revolta face o sentido estético geral, que move as pessoas a operar sobre partes e porções do corpo próprio e alheio, tornando-o um produto socialmente aceitável e agradável encaixando-o em padrões estéticos que muitas vezes não batem com o nosso sentir.  

Pensando no autor que pesquisei no doutorado, posso dizer que sempre fui mais carvalho do que fórmica, e isso é fato, a cada um a sua madeira preferida. 



sabato 6 luglio 2019

Amorcidade - Amor de gente jovem na cidade




 Imagens de Brian Rea, ilustrações para a coluna Modern Love do New York Times

O amor e a cidade são duas coisas difíceis de se entrosar. Mais a cidade é grande, mais é difícil o amor. Tamanhos diretamente proporcionais. As possibilidades se multiplicam devido às situações que a metrópole propicia, ainda mais numa metrópole tropical com vivência de rua. Ainda mais numa metrópole tropical com uma vivência de Rua profundamente enraizada numa cultura do Carnaval.
As geometrias urbanas unem e dividem. Me lembro nitidamente da fala de uma amiga italiana na Argentina. ‘Aqui é suficiente – dizia ela – uma pessoa morar em Belgrano e a outra em La Boca (dois bairros relativamente longe da cidade de Buenos Aires) para o amor não dar certo.’ Eu sempre fico pensando que antes as pessoas não tinham metrô, não tinham celulares e ainda assim dava mais certo do que hoje. O espaço físico urbano se dilata nas redes, transborda em milhares de linhas de conexões que partem de celulares, tablets e computadores; Facebook, Instagram e aplicativos de paquera explícita, como o Tinder e o Happen, ampliam esse espaço urbano. Na verdade você se afoga em contatos que não sabe gerir, e que acabam sendo todos superficiais. Mais tem, mais troca. Mais troca, mais não se aprofunda. Mais não se aprofunda, mais troca de novo. Tendencialmente eu sou bastante livre para acreditar que a fluidez dos relacionamentos não precisa passar por etiquetas, e entendo apesar de não ter um namoro faz dez anos a ideia de que relacionamentos livres talvez possam ser mais saudáveis do que relacionamentos monogâmicos marcados por infidelidades reiteradas, a maioria unicórnio, porque é quase sempre o macho alfa que trai. Mas ultimamente começo a pensar que o “troca-troca”, como já algumas feministas também começam a insinuar, talvez seja só uma forma acumulativa capitalista de viver o amor. Não sei mais se por trás dessa liberdade não se esconde uma outra forma de capitalismo, o consumo do outro, a descartabilidade das relações e uma competição desigual entre as pessoas que precisariam de mais tempo para se fazer conhecer. Como se a Kombucha produzida artesanalmente quisesse competir com a Coca-Cola. Confesso não ter uma ideia definida, mas é um pensamento que começa a se insinuar na minha mente também.


Não são poucas as dificuldades, aliás, que se vivem também por causa de questões mal resolvidas da masculinidade contemporânea. A maioria dos machos descontruídos se revelam esquerdo-machos, gostam de ser livres, mas quando a mulher também o é, incomoda. Já me aconteceram casos de pessoas colocarem de forma inadequada (no tempo e no modo inapropriado) um “Eu não sou monogâmico”, e frente a uma resposta “Eu também não”, vejo a cara deles mudar de cor. Agora não é que naquele momento eu estivesse necessariamente envolvida com outras pessoas, mas simplesmente quis marcar uma igualdade de plano, uma reciprocidade afetiva. Marcar o fato de que se eu quisesse também poderia, mostrando o desnecessário que era aquela declaração naquele momento. Me desculpem, mas não vou ser a mulher do “Samba da Benção” do Vinicius, que espera o homem triste e chorando com as mãos cheias de perdão. Não mesmo.

Esses mesmos machos esperam às duas da manhã para te chamar e se você estiver em outra ficam loucos. Agora liberdade é para quem e para quê? Só para os machos e como exercício de poder? Não seria mais fácil, às vezes, assumir que está a fim de uma pessoa correndo o risco de “perder” as outras 100 que ficarem no seu caminho? Ou é só uma questão de domínio e controle do outro? No fundo, se você ligar para uma mulher às duas da madrugada e achar que ela está te esperando, não é uma forma de colonização do outro? Exercício de domínio emocional baseado na prática da falta e da chantagem implícita, do tipo ou vai estar disponível agora ou logo depois vai ter outra ocupando o seu lugar e quem sabe quando vai chegar de novo (se chegar) a sua vez. 


Aí depois, além da afirmação dessa liberdade com regras aleatórias para cada um garantir para si as mil oportunidades (inutilizadas) que poderiam passar pelo seu caminho, a complicar as relações hétero, chega a diferença na organização do percurso de vida entre homens e mulheres. Já tem muitos anos que moro sozinha e pago as minhas contas, e isso apesar de poder parecer algo que as amigas dizem para te consolar quando alguém de quem você gostava vai embora, estressa demais os homens da sua faixa etária que ainda não tomaram caminhos profissionais e moram em situações de dependência financeira ou fortes limitações. Sem emitir nenhum julgamento de valor sobre as escolhas e percursos individuais, pois cada um tem o seu percurso de vida, é um dado concreto que as mulheres têm uma preocupação maior com a realização profissional e autonomia financeira. Agora essa seria uma culpa a mais para um relacionamento não dar certo? O homem ou se sente inferior ou acha que você teve sorte (vai conseguir explicar para a criatura que meu pai era operário e minha mãe costureira), ou  em muitos casos encosta na mulher.
Quem sabe mais para frente as mulheres hétero tenham menos problemas nos relacionamentos com os homens, porque talvez esses já tenham superado todas as crises do século XXI com as quais nos deparamos nós que temos 30 e pouco agora.


Aí entre encontros fortuitos na rua, aplicativos e cansaço, chega uma hora em que você não olha mais para a idade. Entre quarentões e novinhos alguma coisa muda, mas não a substância. Os quarentões (incluindo também os da minha idade, dos 33 para cima) medem qualquer movimento, palavra, olhar, mensagem, com conta-gotas, pois eles têm um medo terrível de você se apaixonar por eles, como se você estivesse apenas esperando por eles para entrar num relacionamento (quanta convicção!). Os novinhos, por outro lado, não têm esse medo – você, mulher mais velha e experiente, para eles funciona um pouco como uma musa – portanto se expõem sem nenhum problema, já que eles nem preveem a possibilidade de você se apaixonar por eles, e com razão diria eu, apesar de serem um ótimo remédio para a autoestima. Mas já vi pessoas adultas terminarem comigo para namorarem sério com garotas de vinte anos, isso, nas minhas cogitações, porque com uma pessoa de 30 teriam a obrigação de se comportarem de forma mais estruturada, mais adulta, deveriam sofrer a comparação sobre a questão financeira, enquanto com pessoas mais jovens ainda exercitariam o direito a se comportarem como adolescentes, e apesar da diferença de idade, talvez teriam mais proximidades de estilos de vida. Para dar um exemplo banal, eu não posso acordar tarde todos os dias.

Alguns indivíduos (transversais às idades) surgem de vez em quando, e  logo no primeiro encontro, fazem questão de mostrar que eles não são como todos os outros cariocas. São mais gentis, mais diferentes, mais sensíveis, mas de forma tão excessiva que você começa a desconfiar. De fato, ou vão sumir logo depois ou têm algum segredo que você vai descobrir com o tempo. Esses mesmos te acusarão de ser fria e distante, sem entender que uma pessoa acostumada ao caos da Babilônia e a se defender não costuma ser tão acessível de primeira. Esses que fazem questão de parecer diferentes e exagerar em declarações eu chamo de excessivos, sim eles são excessivos e não temperamentais. Pois, o temperamental excede porque sente, os excessivos excedem porque exageram coisas que não sentem, falam da boca para fora.

Mais o tempo passa mais levamos feridas, histórias, atitudes fossilizadas, onde o inconsciente e as lembranças de decepções e expectativas desatendidas falam mais alto e guiam nossos comportamentos, formas de falar, e nem percebemos mais. Isso tudo pode incomodar, mas é o nosso histórico, as pessoas podem ler como uma falta de leveza, mas as histórias de vida constituem nossa topografia sentimental e guiam nossas ações. Pois, não é verdade que, quando o cachorro sabe que apanha se fizer algo errado não faz mais? Como diz um aluno meu: ‘Se tem quem bate, é porque sempre tem quem apanha’. Sinceramente, se a experiência nos relacionamentos serve para alguma coisa, é para o desenvolvimento da inteligência emocional. Ninguém quer apanhar, mesmo se isso significa colocar algumas barreiras defensivas necessárias. Pois a gente aprende a não se expor.

Concluindo. Outro dia me autofiz uma sessão de tarô (psicanalítica) sobre o amor, tentando desvendar algumas dúvidas para refletir sobre casos e joguei três cartas: passado, presente e futuro. O passado tem a Torre (16), o presente a Sacerdotisa (3) e o futuro a Morte (13).  Essas cartas fazem todo o sentido para mim.
A torre que cai é a ilusão desatendida, o vislumbre da ilusão de que você vai desafiar o céu. Mas a torre cai, e cai também a presunção de pensar que algumas coisas eram de um jeito que não eram. A queda é a punição por ter tido essa vaidade e excesso de gênio. No fundo, a torre cai porque foi desafiado Deus. Quando nova, sempre me equivocava, achava que alfa fosse beta e para que alfa fosse beta forçava a leitura das coisas em algum sentido, fazia tudo do jeito que sentia, seguia só o fluxo potente dos sentimentos e obviamente a torre caía. A torre que cai é a instabilidade, a precariedade emocional, o desmoronar das convicções e das construções.
A Sacerdotisa, que representaria o momento presente, é a mulher que apesar de olhar para a esquerda possui grande equilíbrio -  a cor azul  do intuitivo-emocional e  a vermelha do terreno-carnal são compensadas. Por isso a sacerdotisa consegue balançar melhor escolhas e palavras, e o livro na mão representa a sabedoria, sabedoria que no caso das relações é dada pela experiência. Sua base e da Torre são bem diferentes. Aqui nessa carta é bem grande, o apoio dela é firme, o  olhar firme e o equilíbrio das cores é confirmado por uma base de apoio ampla, nem as pernas são visíveis. Faz todo o sentido para representar essa minha situação atual, em que apesar de continuar errando, consigo olhar para as situações de forma mais equilibrada, sem nem sempre ser temperamental, faço da experiência uma forma de sabedoria, quem sabe às vezes um excesso de proteção. No fundo, a sacerdotisa não é consagrada só a uma divindade e inacessível para todos os outros homens? O futuro é a Morte. Carta maravilhosa, se despojada da leitura cristalizada do negativo da perda. A grande transformação, o amor será possível só se nos despojarmos das crenças e revolucionarmos tudo, a morte é a queda de tudo, a desconstrução de velhos padrões. A grande transformação. Adieu amor romântico da adolescência, adieu amor livre da idade adulta, o que virá depois?



martedì 19 marzo 2019

Porque o simbolismo de Vai malandra ainda está bem longe do feminismo e a Anitta não representa minhas instâncias feministas

Porque o simbolismo de Vai malandra ainda está bem longe do feminismo 
e a Anitta não representa minhas instâncias feministas



Consciente do problema em que estou me metendo, pois falar de símbolos amados pelo país que se escolhe por adoção e por amor sempre te coloca no lugar da gringa  que quer falar de uma coisa que não conhece a fundo. 
Aceito essa possibilidade de ataque, já que isso durante as últimas eleições presidenciais foi a regra e escolher morar fora do seu país significa isso também. 
“Ahora bancatela”diriam meus amigos argentinos. 

Mas como já decidi em 2018, em 2019 vou dar continuidade a todas aquelas ações de desafio que me legitimam como cidadã do mundo sem medo de falar. No fundo o debate, até na briga, é sempre prolíficoe nesses tempos mais que nunca temos que ser fomentadores de discussão. Até quando eles incomodam.

Durante a noite do réveillon e na última semana, por ocasião do dia das mulheres, me encontrei conversando com várias pessoas sobre a pop-star Anitta. O assunto era se o vídeo Vai Malandra poderia representar ou não uma forma de empoderamento de tipo feminista e trazer instâncias para as questões de gêneros tão urgentes para as mulheres, não só do Brasil, mas do mundo inteiro. O mesmo debate que envolve a Anitta, também toca outras ícones pop de fama mundial, tipo a Beyoncé, que por mais que eu adore, traz uma quantidade infinita de aporias internas – entre as quais ser ícone feminista, mas pagar poucos dólares às costureiras da sua marca.

Algumas pessoas afirmaram que a Anitta pode ser sim um exemplo de mulher empoderada por duas razões específicas. 
A primeira tem a ver com o ideal de ascensão social, já que a Anitta provém de uma favela do Rio de Janeiro, e portanto representaria o mito da self-made woman, que conseguiu lutar contra a corrente e as barreiras e construir uma sólida base financeira e um grande sucesso em um mundo que discrimina pelo gênero e pela extração social. 
A segunda razão estaria mais ligada à imagem e à simbologia propriamente dita da mulher que a cantora ofereceria. Nessa perspectivao ponto de força, segundo algumas pessoas, foi ter quebrado os paradigmas machistas que objetificam o corpo da mulher e ter decidido ela mesma fazer o papel de gostosa, que requebra com o bumbum sem que ninguém lhe diga quando e como fazer. Outras alegações para essa posição eram que a cantora carioca, em termos visuais, também rompia com o cânone de beleza que restringe o corpo feminino a uma amostra de turgidez sensual e colágeno, pois ela mostrava durante os primeiros oito segundos do vídeo – contei,são 8 mesmo – seu bumbum com celulite e sem retoques.


Outras pessoas com que discuti também mostraram como a Anitta, especialmente para algumas situações nas comunidades, onde muitas mulheres estão bem na frente na luta pelo sustento da família e o reconhecimento social por tudo o que elas fazem, legitime esse modelo de mulher independente que não precisa de um homem para manter a casa e sustentar a família. E isso chega a ser para algumas pessoas um modelo de emancipação par ser imitado. Todas essas percepções me parecem verdadeiras, mas limitam, do meu ponto de vista, a perspectiva da luta feminista das mulheres. E direi logoporquê. 

Eu como linguista trabalho muito com filosofia da linguagem e filosofia estética, e é fato que não existe um grau zero da linguagem. 
A linguagem se compõe de discursos, e de outra forma poderíamos dizer que discursos diferentes se apropriam da linguagem. Também a forma de mostrar as coisas, de ordenar o sensível diante dos nossos sentidos, a estética em que as produções artísticas e culturais aparecem, sempre querem dizer algo. 
Vamos tentar desbravar brevemente o tipo de discurso que a linguagem da Anitta trazassim como a estética presente no vídeo. 



Resumindo, o vídeo acima postado mostra uma linda mulher, Anitta, subindo de moto com um cara para uma laje onde outras belas mulheres sedutoras, com biquíni de fita isolante, tomam sol mexendo com o bumbum na tentativa de fazer aparecer as famosas marquinhas que no imaginário coletivo brasileiro são percebidas como sexy. À noite tudo acaba em um baile. Durante o dia, enquanto as meninas tomam sol,  Anitta rebola em uma piscina com um cara que usa o seu bumbum como se fosse um tambor. 

É verdade que nenhum homem do vídeo obriga Anitta a receber repique de mão na bunda, e é verdade que A malandra tem toda a situação sob o seu controle, mas ela não faz nada menos nada mais do que assumir o papel que normalmente pertence ao homem só lhe mudando o sexo. Vamos tentar explicar melhor. A linguagem da Anitta é como se fosse uma linguagem dos homens levada a frente pelas mulheres. Ela simplesmente inverte os papéiscomo que dizendo: Os homens objetificam o meu corpo? Ah não, sou eu que decido entrar nesse papel de gostosa e que permito que eles  me apalpem e dedilhem no meu bumbum que nem tambor. Sou eu que decido rebolar até o chão e usar o meu corpo como forma de sedução. 

Ok. Pode ser uma opção. Mas até aqui a Anitta só inverteu os papéis, ela decide sim, ela rebola sim, ela permite aos homens que a toquem, sim, mas ela age e se comporta exatamente dentro de paradigmas de pensamentos masculinos e patriarcais. A Anitta nesse vídeo decide simplesmente que comportamentos masculinos e machistas que às vezes são sofridos pelas mulheres, são autorizados pela própria mulher porque supostamente ela está querendo aquilo. Digo supostamente ela está querendo aquilo porque a réplica que algumas pessoas com quedebati me deram é que a Anitta no vídeo mostra uma mulher que deixa aquilo acontecer porque quer. A minha pergunta é: será que no imaginário de algumas mulheres aquela escolha de “eu decido malandramente ser gostosa” é válida só porque há uma indústria que produz sentido e o capital criando um imaginário coletivo que faz aquilo aparecer como uma escolha nossaA questão feminista para mim não é inverter os papéis, é subverter o paradigma. É desconstruir a linguagem com que somos tratadas e inventar uma nova. Infelizmenteo empoderamento não passa pela autorização de um tratamento só porque em algum momento estou querendo. Se esse tratamento traz consigo a marca de anos de assujeitamento e microfísica do poder que  –  como diria um famoso amado meu de outros tempos –  se exerce sobre os corpos, ele então não me interessa, nem se eu como mulher posso decidir que quero aquilo em algum momento. Dito em poucas palavrasautorizar um comportamento machista, não faz dele um elemento de luta feminista, ou melhor, não serve para a nossa luta de emancipação, não acrescenta nada. Dessa forma só se autoriza um homem, sem reprovação nenhuma, a manter as atitudes de sempre e só deixa as mulheres convencidas de que não existuma indústria que produz sentido fazendo com que “ a gostosa” seja o psico e biotipo almejado por elas.

Eu, como mulher feminista, não quero em nenhum momento atuar segundo paradigmas patriarcais que veem o meu corpo como um objeto sexual e achar isso ok só porque eu estou querendo. Em sumasó porque eu liberei. Podemos querer tantas coisas e ainda assim essas coisas não trazerem as nossas instâncias. Quantas pessoas nas últimas eleições votaram apoiando “sem querer” causas e sujeitos que de fato não os representavam, validando por fimo discurso do opressor sem se dar minimamente conta disso e alegando razões outras que pudessem corroborar suas escolhas? Sem querer exagerar, acho realmente, e nisso o professor Charles Feitosa de filosofia estética deixou uma marca na minha formação, que a questão não esteja só em uma inversão de papéis, mas em uma ruptura, uma desconstrução do paradigma opressor, segundo o vocabulário delenuma transversão. 

Lembro-me muito nitidamente de um episódio brasileiro, em que um juiz não condenou um sujeito que havia ejaculado em cima de uma mulher em um ônibus de São Paulo. Agora o fato foi o horrível, o juiz tomou uma decisão absurda, condenável e criticável com toda a força, mas a reação de uma parte da sociedade que luta por mais direitos foi criticável também. 

Estava sentada no meu computador dando uma vadiada pela internet nas redes sociais quando de repente recebo um convite no Facebook para um evento que era “ejaculação coletiva na cara do juiz fulano de tal”. Em suma achei esse ato e o nome do evento horroroso, se os outros são machistas eu não quero adotar as mesmas ferramentas para construir minha luta. E obviamente não penso em desconstruir e condenar um ato/situação de machismo com uma dialética e uma linguagem que é a mesma daqueles que quero condenar. Não quero agir como eles e usar sua mesma linguagem de violência e opressão. Não acho legal nunca, até quando forem as mulheres, gozar na cara de alguém sem o seu consentimento, até se for por vingança ou por reação a uma justa causa. O título do evento que queria nascer com um intuito bom, ou seja apoiar uma mulher e através dela a luta de todas as que já passaram por um ato ofensivo de opressão, se tornou um contrassenso. A opressão das mulheres e as ofensas muitas vezes se concretizam e passam pelos corpos físicos, de fato alguém ejaculou numa mulher sem o seu consentimento, invadiu seu corpo físico e com isso seu corpo político, e, o ato que queria defendê-la, afirmaria a mesma injustiça reproduzindo o mesmo padrão. A ejaculação coletiva na cara do juiz que promulgou a sentença não pode pertencer a uma linguagem e a uma luta feminista consciente. Só seria a perpetração de outro abuso, imitando uma linguagem e uma estética que não podem representar nossas instâncias. 

O que gostaria de dizer, sem com isso tornar a Anitta um monstro, é que também nós mulheres e feministas temos que prestar atenção não só às palavras de ordem das nossas lutas, mas também às linguagens e às estéticas que acaracterizam. Pois o capital está pronto em qualquer esquina para se apropriados nossos discursos através de linguagens e propostas que respondem a lógicas mercadológicas e patriarcais, e maquiando-as com discursos de esquerda. Não adianta a Anitta mostrar nos primeiros oito segundoo bumbum com celulite se no resto do vídeo o padrão de beleza principal e preponderante, tirando a Juju Todinho – uma mulher de dimensões fora do padrão estético que aparece no vídeo dançando – é um corpo túrgido, perfeito e bem “mulher-gostosa-padrão-machista-brasileiro”, que se prepara para fazer marquinha assim como alguma indústria que produz sentido decidiu que é o sexy. Não adianta gritar sou eu que decido rebolar até o chão e me colocar no centro da atenção se dois caras em dois momentos diferentes repicam o seu bumbum como se fosse um tamborim com um fazer e uma satisfação manifesta de um poderoso chefão que possui um mulherão para a exposição. Tudo isso não adianta porque os símbolos, as imagens e a linguagem são iguais às dos homens. Ela está falando como falaria um homem, a quebra do padrão se realiza pela invenção de uma linguagem e umas estéticas novas. Essa é a parte mais difícil que cabe a nós mulheres. Construir um rio que possa abalar tudo o que anteriormente disseram sobre a gente. Derrubar o discurso que envolve a linguagem numa capa de machismo e capital. Como quando dos shampoos com silicones e parabenos passamos pro low poo. Processo idêntico. 

Como se diz na Itália pane al pane e vino al vino. A Anitta é sim uma mulher corajosa que se fez sozinha e que ascendeu socialmente incorporando um simbolismo de mulher independente, que lhe reconheço, mas dizer que o discurso feminista se resolve aqui não procede. Também dizer que Vai malandra representa uma libertação do corpo da mulher, é uma posição que não se sustenta para mim, só vejo nesses corpos expostos amarras a padrões que nós mulheres não escolhemos. 

Eu não me reconheço na estética e na linguagem do vídeo. Permitir a alguém que batno bumbum como se fosse um tamborim e admitir que não sou um tripúdio de colágeno por oito segundos, mas fazer o papel da gosta nos outros 4 minutos e meio rebolando na cara de alguém usando meu corpo como forma de sedução, para mim não é subversão do paradigma patriarcal. 
A gente só começa a falar como eles.

giovedì 1 novembre 2018

4.675.355 placas para Marielle ou de como a matemática e a épica ainda ajudam a decifrar o mundo





tempo de leitura estimado: 6 minutos.


   Nunca fui boa em matemática. Nunca. Mas se os fantásticos professores que tive me ensinaram algo é que com certeza os números são sempre expressivos. Nos contam alguma coisa. Essas eleições no Brasil foram realmente o ápice de um teatro do absurdo em um quadro de Dalí. Coisas difíceis de se desenredar aconteceram, ou na verdade, coisas tão simples de interpretar que não conseguíamos tomá-las por verdadeiras. O elemento que mais me chocou foi a quebra da placa dedicada à vereadora assassinada, por razões políticas, Marielle Franco, durante um ato em favor de Jair Bolsonaro. Porque sim, temos que repetir todos os dias que a morte de Marielle foi um assassinato político.

   Agora tudo o que conseguimos ver por vídeo em circulação sobre esse ato feroz é que o tal de Rodrigo Amorim e Daniel Silveira, ambos PSL, arrancaram e quebraram a placa dedicada a Marielle Franco. Embora no vídeo não haja a quebra direta da placa por parte do governador eleito do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, ele está lá presente, olha para o gesto em que os dois candidatos mostram, como se fosse um troféu, a placa quebrada da Marielle e acrescenta uma fala pedindo que seja homenageado um tal juiz que está sendo ameaçado pelo trabalho que está fazendo; como se a placa para a Marielle excluísse a possibilidade de homenagear outro servidor que está combatendo a corrupção. Evidentemente haveria para ele uma hierarquia de tratamento. Essa forma de comportamento me parece muito claramente fortalecer a selvageria que lá foi cumprida. Além de afirmar, nas entrelinhas, que existem sujeitos mais merecedores de homenagem que outros, pelo menos na simbologia do imaginário coletivo de um homem hetero, branco e rico.

   Voltemos à primeira consideração, que envolve a matemática, ou melhor, uma das propriedades básica que todos já estudamos, uma vez pelo menos, no ensino médio: a propriedade transitiva. A propriedade transitiva diz o seguinte: se A é igual a B e B é igual a C, isso implica que A é igual a C. E é exatamente nesse ponto que eu me decepcionei mais com a alma brasileira.
Se Witzel participou do ato em que foi quebrada a placa da Marielle sem condenar claramente tal atitude no momento (porque fazê-lo depois é fácil), penso que o 59% dos eleitores, aos quais corresponde o número assustador de 4.675.355 de almas votantes, quebraria a placa da Marielle, ou, no mínimo, não condenaria abertamente um gesto desse tipo. E isso é chocante.

   Quando na Itália foi eleito o péssimo primeiro ministro Silvio Berlusconi que era em tudo ragazze, idiotices, incompetência e bunga bunga, Der Spiegel, respeitável revista alemã, disse que os italianos não podiam se queixar dele, já que cada povo através da eleição simplesmente elege o seu alter ego. Ou seja, a pessoa em que ele se revê, o seu outro. O italiano médio era medíocre, como o Berlusconi. Só pensava que as mulheres podiam ter sucesso com base na bunda e nas tetas, só queria, como o seu primeiro ministro, achar a forma para se enriquecer torneando a lei em detrimento dos demais e poderia continuar assim fazendo ad infinitum. Eu no momento fiquei ofendida, pois não havia votado no Berlusconi, mas a verdade era que Der Spiegel tinha razão, havíamos escolhido nos alimentar de mediocridade, porque éramos medíocres. Mas o que eu quero dizer é que com esse episódio, o Brasil supostamente acolhedor, cuja ícone é a imagem do Cristo de braços abertos, mostrou ter esses braços bem fechados, cruzados. Ou armados por pistolas, ainda que invisíveis.
4.675.355 desrespeitaram a Marielle. Pois, voltando à propriedade transitiva, se Witzel presenciou e não condenou abertamente o ato, e 4.675.355 o escolheram, esse mesmo número de pessoas não condenaria esse ato. Uma forma de ser todos coniventes com o assassinato da Marielle. Parece forte, mas não é. A propriedade transitiva fala forte e a matemática tendencialmente, e especialmente quando aplicada, não falha.

   Aí entra a épica. Eu sempre amei a Ilíada e nisso, diferentemente da matemática, era boa sim. Tirava 10 em todas as provas. Pois fazia a melhor paráfrase possível, sabia todos os nomes e parentescos, e sim, o que me interessava mais, conseguia entrever na épica e na mitologia correlata uma forma de explicar fatos do mundo contemporâneo.

   Acontece que Aquiles, o mais valoroso dos heróis áqueos, brigou com Agamenon que, não reconhecendo oficialmente a sua importância nas batalhas, mandou tirar a sua escrava favorita, Briseis, filha do sacerdote de Apólo, Criseis. Aquiles, que era lindo, livre, leve e solto, ofendido por tal gesto decidiu mandar Agamenon se ferrar. Como? Não participando mais das batalhas. Os troianos, que tinham o apoio de Apólo e cujo maior herói era Heitor, começaram a tirar onda com a falta de Aquiles nas batalhas. Começaram a ganhar todas. Os áqueos estavam desesperados. Mas Aquiles, conhecido pelo seu caráter raivoso e megacabeçudo, era irremovível. Não abria mão da sua decisão. Foi assim que Pátroclo, sobrinho favorito de Aquiles, decidiu pegar a armadura e o famoso escudo do tio, forjado pelo deus do fogo Vulcão, às escondidas para entrar na batalha e assustar os troianos, os quais logo achariam que o mais valoroso dos heróis estava de novo no campo. Só que Pátroclo não era tão bom de espada quanto Aquiles e foi morto por Heitor. Quando a máscara da armadura caiu foi que todo o mundo se deu conta do sufoco que iam passar. Aquiles raivoso, com o sangue batendo nas veias decidiu ir matar o herói troiano.
Aquiles foi à beira dos muros de Ilion, a antiga cidade de Troia, onde Heitor estava já se preparando para o duelo dedicando a  Andrómaca uma belíssima declaração-despedida de amor, pois sabia que provavelmente ia morrer. Aquiles além de ser bom demais, era um semideus. Heitor também era bom demais, só que era um herói humano, todas suas virtudes provinham de si mesmo e também era desprovido da armadura e do escudo forjados pelo deus do fogo que garantiam a imbatibilidadade. Assim foi que Heitor morreu. Ainda na raiva Aquiles pegou o corpo de Heitor e o arrastou com uma biga durante quilômetros, profanando sua memória no intento de impedir a sepultura, coisa gravíssima pela cultura grega, pois sem sepultura a alma nunca teria paz. Assim Príamo pai de Heitor, já velho e sem paixões para brigar, mas só com experiência para oferecer, derramado em lágrimas, pediu a Aquiles que respeitasse o inimigo pelo menos na morte.
Você acreditam que Aquiles no final devolveu o corpo, chorou junto com ele os lutos e honrou a sepultura do inimigo? Aquiles era o mais cabeçudo e raivoso dos heróis gregos, tanto que a Ilíada começa assim “Cantami o Diva del Pelide Achille l’ira funesta che infiniti addusse lutti agli achei” (ainda sei de cabeça em italiano), me conte oh Musa sobre o Aquiles, filho de Peleu, cuja a ira funesta fez inúmeros mortos entre os gregos.

   Se o respeito para os mortos, até inimigos, fez mudar de ideia ao mais estigmatizado pela raiva, dos personagens das Ilíadas, realmente não consigo entender como para além das distâncias políticas com Marielle esses fanáticos nem na morte conseguiram respeitá-la.

Ainda bem que existe a Mangueira. Isso dá uma certa esperança.

Ergue-se da cadeira o divo Aquiles,
Por si levanta a Príamo, e o compunge
Branca a régia cabeça e branca a barba:
“Ai mísero, sobejo hás padecido!
E a mim que te privei de extremos filhos,  
Buscas sozinho? Entranhas tens de ferro.
Senta-te;
ao luto agora devemos tréguas.

Viver sempre em tristeza é lote humano:
Existir sem cuidados é dos deuses.




*Os dados da votação foram retirados do site do tribunal eleitoral regional.
*Se agradece a revisora Nicole Alvarenga Marcello que para a revisão desse artigo não cobrou nada; depois dessa primeira revisão o texto sofreu outras alterações, por isso se erros de português aparecerem não são devidos à incompetência da revisora.
*Os versos da Ilíada citados em português estão na tradução de Odorico Mendes; os grifos são meus.
*Os versos da Ilíada citados em italiano, foram de cabeça, não saberia referenciar a tradução.