Frestas/ entre-matérias: a saudade será uma imagem listrada cavada na retina, um som de chuva leve, um cheiro de grama molhada.
Relatos urbanos de uma gringa
sábado, 1 de fevereiro de 2025
terça-feira, 13 de junho de 2023
Estética do guarda-chuva ou da difícil sobrevivência em épocas de boçalidades
É nesses dias de chuva que há duas coisas ainda mais impetuosas, ainda mais desafiadoras a serem cumpridas. Para os que como eu sempre esquecem de sair com guarda-chuva, ou mesmo quando lembram, o esquecem no primeiro lugar onde param, começa uma batalha renovada a cada passo para a conquista de um espaço coberto à beira dos prédios. Marquises, parapeitos, beirais, galerias nas fachadas dos prédios, tudo serve. Ou melhor, tudo serviria, se não fosse o fato de que quem já tem o guarda-chuva, em vez de ficar no merecido lugar de exposição aquática, como forma de prêmio por ter lembrado de levar o tão valioso objeto ou ainda por não tê-lo esquecido em lugar nenhum, se acha no direito de andar embaixo de marquises, parapeitos e beirais com o guarda-chuva aberto. Para quem se choca com essas pessoas no verso oposto ou no mesmo verso, só sobra a parte externa da rua, posição piorada pelo fato de esses grandes guarda-chuvas azul cobalto dos senhores sempre-levo-guarda-chuva-e-nunca-o-esqueço-em-lugar-nenhum gotejarem água em abundância pelas extremidades do esqueleto metálico que funciona como corredor de transporte de pequenos rios. Por que azul cobalto? O guarda-chuva desse tipo de pessoa sempre será azul cobalto, são seres lógicos, previsíveis, calculadores e organizados; os guarda-chuvas estampados são da outra metade — que não o leva ou que quando o leva, esquece. Estes são seres ilógicos, imprevisíveis, desprendidos e definitivamente desorganizados.
Sem querer ainda tirar conclusões, vamos ao segundo enfrentamento. A segunda prova. A chuva finalmente diminui. Dá descanso para as pobres formigas que se movimentam pela cidade, trabalhando incansavelmente em prol de uma riqueza que não lhes pertence. Não só essas pobres formigas trabalhadoras fazem as contas com as próprias tristezas, solidões e preocupações com café que em épocas de inflação chega a custar R$ 19,90, mas ainda devem tentar fugir do risco de serem espetados. Como assim espetados? Dirá o leitor, que acha tal colocação um exagero. Pois é, parece difícil de entender, mas não o é. Os mesmos senhores sempre-levo-guarda-chuva-e-nunca-o-esqueço-em-lugar-nenhum, ao fecharem o guarda-chuva, não conseguem deixá-lo em uma posição vertical, como qualquer pessoa dotada de bom senso faria. Não, eles não. Eles seguram o guarda-chuva grande, azul cobalto e com ponta grande de aço bem cintilante, horizontalmente. O que pode provocar um guarda-chuva segurado em posição horizontal? Ora bem, não há de se esquecer que essas pessoas não se limitam simplesmente a manter em posição horizontal um objeto de cerca de 60 cm, elas o balançam e o sacodem de trás para frente e de frente para trás. A ponta de metal. Medição de cerca de 60 cm. Posição horizontal. Resultado: espetar as pessoas. Sempre me encontro andando ou na frente ou atrás de um desses senhores tudo-levo-e-nada-esqueço que não percebem que o guarda-chuva ou espeta alguém atrás (na maioria das vezes eu, euzinha mesma) ou se choca com alguém na frente (na maioria das vezes eu, euzinha mesma).
E quando a batalha termina, finalmente em casa fica a amargura de um dia de chuva ser muito mais que um casaco molhado. Qual o denominador comum que alimenta e impulsiona essas duas atitudes: andar com guarda-chuva embaixo de lugares cobertos que poderiam abrigar os desprovidos de tais ferramentas e segurar o mesmo objeto pontudo de cerca de 60 cm horizontalmente, balançando-o de maneira a espetar quem estiver por perto? O fato de não perceber o corpo do outro e suas necessidades. O fato de estar na rua como se está na própria casa, e se isso às vezes pode até ser bom, porque ressignifica o espaço público de memórias pessoais, por outro lado, e nesse caso específico particularmente, me faz pensar na incapacidade de viver o espaço público como lugar do coletivo e no egoísmo de transformá-lo em um grande espaço privado, e disso nunca saiu coisa boa.
terça-feira, 3 de março de 2020
Brazilian wax - ou de quando outras mulheres querem cavar a sua virilha
Thema - Anatomical roots |
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Performance de Deborah De Robertis (maio 2014),
na frente do quadro de Gustave Courbet "A origem do mundo" (1866).
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Técnica de depilação de um desses salões. |
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Meme de Fantaghirò. Tradução: "Tranquila, vamos cortar só as pontas". |
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Man Ray - Erotique voilée, 1933. |
sábado, 6 de julho de 2019
Amorcidade - Amor de gente jovem na cidade
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Imagens de Brian Rea, ilustrações para a coluna Modern Love do New York Times |
As geometrias urbanas unem e dividem. Me lembro nitidamente da fala de uma amiga italiana na Argentina. ‘Aqui é suficiente – dizia ela – uma pessoa morar em Belgrano e a outra em La Boca (dois bairros relativamente longe da cidade de Buenos Aires) para o amor não dar certo.’ Eu sempre fico pensando que antes as pessoas não tinham metrô, não tinham celulares e ainda assim dava mais certo do que hoje. O espaço físico urbano se dilata nas redes, transborda em milhares de linhas de conexões que partem de celulares, tablets e computadores; Facebook, Instagram e aplicativos de paquera explícita, como o Tinder e o Happen, ampliam esse espaço urbano. Na verdade você se afoga em contatos que não sabe gerir, e que acabam sendo todos superficiais. Mais tem, mais troca. Mais troca, mais não se aprofunda. Mais não se aprofunda, mais troca de novo. Tendencialmente eu sou bastante livre para acreditar que a fluidez dos relacionamentos não precisa passar por etiquetas, e entendo — apesar de não ter um namoro faz dez anos — a ideia de que relacionamentos livres talvez possam ser mais saudáveis do que relacionamentos monogâmicos marcados por infidelidades reiteradas, a maioria unicórnio, porque é quase sempre o macho alfa que trai. Mas ultimamente começo a pensar que o “troca-troca”, como já algumas feministas também começam a insinuar, talvez seja só uma forma acumulativa capitalista de viver o amor. Não sei mais se por trás dessa liberdade não se esconde uma outra forma de capitalismo, o consumo do outro, a descartabilidade das relações e uma competição desigual entre as pessoas que precisariam de mais tempo para se fazer conhecer. Como se a Kombucha produzida artesanalmente quisesse competir com a Coca-Cola. Confesso não ter uma ideia definida, mas é um pensamento que começa a se insinuar na minha mente também.
Esses mesmos machos esperam às duas da manhã para te chamar e se você estiver em outra ficam loucos. Agora liberdade é para quem e para quê? Só para os machos e como exercício de poder? Não seria mais fácil, às vezes, assumir que está a fim de uma pessoa correndo o risco de “perder” as outras 100 que ficarem no seu caminho? Ou é só uma questão de domínio e controle do outro? No fundo, se você ligar para uma mulher às duas da madrugada e achar que ela está te esperando, não é uma forma de colonização do outro? Exercício de domínio emocional baseado na prática da falta e da chantagem implícita, do tipo ou vai estar disponível agora ou logo depois vai ter outra ocupando o seu lugar e quem sabe quando vai chegar de novo (se chegar) a sua vez.
A torre que cai é a ilusão desatendida, o vislumbre da ilusão de que você vai desafiar o céu. Mas a torre cai, e cai também a presunção de pensar que algumas coisas eram de um jeito que não eram. A queda é a punição por ter tido essa vaidade e excesso de gênio. No fundo, a torre cai porque foi desafiado Deus. Quando nova, sempre me equivocava, achava que alfa fosse beta e para que alfa fosse beta forçava a leitura das coisas em algum sentido, fazia tudo do jeito que sentia, seguia só o fluxo potente dos sentimentos e obviamente a torre caía. A torre que cai é a instabilidade, a precariedade emocional, o desmoronar das convicções e das construções.
terça-feira, 19 de março de 2019
Porque o simbolismo de Vai malandra ainda está bem longe do feminismo e a Anitta não representa minhas instâncias feministas
quinta-feira, 1 de novembro de 2018
4.675.355 placas para Marielle ou de como a matemática e a épica ainda ajudam a decifrar o mundo

Por si levanta a Príamo, e o compunge
Branca a régia cabeça e branca a barba:
“Ai mísero, sobejo hás padecido!
E a mim que te privei de extremos filhos,
Buscas sozinho? Entranhas tens de ferro.
Senta-te; ao luto agora devemos tréguas.
Viver sempre em tristeza é lote humano:
Existir sem cuidados é dos deuses.